– Porque é que não escreves, Dinis?
– Não me apetece
foi abordado uma vez, e eu a assistir, por um homem que lhe pediu cigarros na rua. O Dinis tirou o maço da algibeira, abriu a prata, examinou o interior a contar baixinho, somando o que lá estava dentro, e acabou por responder, de cara triste
– Eh pá não posso, só tenho dezoito
afastando-se a puxar-me o braço enquanto o homem se amargurava com pena dele só ter dezoito. A avó do Dinis dirigia uma casa de prostituição onde ele comia em miúdo com as raparigas que lá trabalhavam e das quais falava, é evidente, com o maior respeito. Levei-o para minha casa
(eu nessa época estava sempre a levar gente para casa)
onde ele ainda viveu longos meses, obriguei-o a escrever na mesa em que eu escrevia, alimentado a tabaco e a água das pedras, de vez em quando pedia-me
– Ó Tónecas
(nunca ninguém me tinha chamado Tónecas)
– Vai ao Santini buscar um gelado para a gente que é peitoral
eu lá lhe trazia o medicamento, de morango ou baunilha, que ele tomava numa repugnância de óleo de fígado de bacalhau
– Não é que me apeteça mas a saúde está primeiro
tirava o lenço do bolso, puxava da garganta uma escarreta que provava os efeitos benéficos do tratamento
– Já está a dar resultado, Tónecas
e lá voltava, enfastiado, ao papel, continuando um texto chamado “Discurso de Alfredo Marceneiro a Gabriel García Márquez”, Alfredo Marceneiro que nós encontráramos uma noite no seu Bairro Alto, sentado na berma do passeio, perdido de bêbado, e para qual o Dinis avançou a abraçá-lo
– Você é um génio.
O outro olhou-o sem o ver, oculto atrás de uma névoa de tinto, com o Dinis inclinado para ele
– Você é um génio
o Dinis
– Sabia que é um génio, você?
enquanto eu tentava puxá-lo
– Larga o homem que ele nem sequer te ouve
o Dinis insistia, inabalável
– Sabia que é um génio não sabia?
e foi um castigo para o arrancar dali
– Temos de tomar conta do Marceneiro que isto está cheio de cámones
lá o arrastei com ele protector
– E se algum cámone grosso lhe dá uma azevia na pantufa, já viste?
a procurar cámones fardados de marujos pelas redondezas
– Temos de encontrar o meu irmão Zéca que é presidente do Lisboa Clube Rio de Janeiro
uma associação desportiva que se dedicava sobretudo ao boxe, na esperança de achar um peso-pluma que ficasse junto a Alfredo Marceneiro em funções de guarda-costas, o irmão Zéca pequenino, gordo, de bigode, tipo Dupont e Dupond, pertencente a essa categoria de carecas que puxam o cabelo da orelha esquerda até à orelha direita
(agora toda a gente rapa a cabeça)
não estava, tinha ido acompanhar um peso-mosca com futuro a um combate qualquer em Alhos Vedros
(ainda haverá combates em Alhos Vedros, pelo menos foi esse o nome que um porteiro, a escarrar sobre o ombro, nos disse, Alhos Vedros, nunca vi escarrar tão bem neste mundo)
o Dinis insistia que, sem guarda-costas, se achava na obrigação de cumprir, ele mesmo, essas funções, e lá acabei por o trazer para casa, argumentando que não podia deixar o “Discurso a Gabriel García Márquez” a meio, ele
– O Marceneiro é mais importante do que qualquer livro
até o conseguir enfiar em casa diante do papel, prometendo-lhe um suplemento de gelado se ele se portasse bem. Sentou-se a contra-gosto
– Com a preocupação com o Marceneiro como é que queres que me concentre?
a olhar a parede em frente
(quem não gosta de olhar paredes vazias às duas da manhã?)
até a primeira frase lhe aparecer no bestunto, ajudando-o a esquecer o fadista, os cámones, o mano Zéca e o Lisboa Clube Rio de Janeiro. Felizmente havia um resto de Santini no frigorífico, o Dinis de caneta suspensa
– Se calhar estou um bocado grosso não achas?
e eu não achava nada, ocupado com a ideia do peso-mosca, em Alhos Vedros, a preparar um um-dois e um gancho da esquerda fatais que levariam o Bairro Alto aos cumes da fama em todo mundo, isto é à outra margem do rio onde uma aurora penosa, de outono, ia começar daqui a nada.
( revista Visão-25.05.2017)
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