O nosso vinho era bom. No paladar, na cor, no equilíbrio do gás, sem cristais, engarrafado com direito a rótulo, a gravata de ráfia e a lacre, timbrado com as armas dos antepassados. Era o melhor ganho que a terra nos dava e qualquer ameaça às nossas latas carregadas, carinhosamente enxertadas, podadas e sulfatadas, fazia explodir a ira de meu Pai. Era ele que enxertava e que podava, que levava dias de Abril e Maio a ver os gomos, o desenvolvimento dos gomos. Depois os cachos e o desenvolvimento dos cachos. A catar ladrões pelas videiras acima e a instruir a canalha que vigiava as vacas, que em vez de andarem a pasmar, fossem tirando os ladrões às videiras. Cada enxerto pegado era coisa de se ir ver. Naqueles dias ainda frios de Dezembro e Janeiro, que era a época da poda, passava o tempo em cima do cavalete e tinha uma tesoura especial. Aliás, toda a ferramenta dos seus trabalhos era especial e não tinha permissão para andar na baila. A cesta da enxertia era um tesouro, a ver em exclusivo com os olhos. E trabalhos que metessem videiras eram altos cargos a pedir protocolo.
Meu Pai fumava muito e só de pensar que outro cancro o podia levar de vez, me dava horas de insónia e sessões de choro na cama. Todos os anos, o jeito de ele podar, fazia-lhe gretar o dedo anelar. Ao almoço, inspeccionava a ferida, deitava-lhe mercúrio-cromo e vinha, do toutiço às orelhas, carregado de cisco da vinha. Gostava de o sacudir. Gostava daquele cheiro dele, a tabaco versus lavanda, misturado com o cheiro lá de fora impregnado na lã da camisola. Sabes quantos cigarros fumei desde manhã? Quatro. A podar fumo menos. Nesse tempo fumava um tabaco de enrolar, acabado de lançar pela nossa Tabaqueira. E eu, que morria que ele morresse, pensava com os meus botões que o tabaco o ia matar e seria mesmo bom que demorasse muito a podar a quinta toda, que os homens sábado e domingo não o pudessem vir ajudar, que sempre fumava menos e assim fintava a morte.
A nossa vinha era “do tarde”. Com o ribeiro a tornear a quinta, num baixo e muito irrigada, fazia a terra mais fria e lenta. Ou seja, a nossa agricultura brotava sempre mais tarde que a dos outros e vinha mais exuberante. Fomos, durante anos, quem mais milho produziu por hectare no concelho. Éramos os últimos a lavrar, a semear, a colher. Na reunião anual com a Adega Cooperativa acertávamos as datas mais finais para entregar as uvas. Como não tínhamos caseiro, não havia partilha de cachos, nem discussão de meias ou de terços. Para mim, coisa ruim. Tinha tido a sorte, num ano em que um tio, por ausência, me incumbiu de lhe tomar conta da vindima e de verificar a partilha. Com direito a ordenado, foi um ver se te avias a contar cestos – um para eles, dois para nós – e a marcar com a navalha, na chibata de oliveira. Mas lá em casa, a sina ditava que vindimasse, que acarretasse, que apanhasse bagos do chão, ou que ficasse à moenga. À escolha. Apanhar bagos nunca me entusiasmou. Quando ganhei corpo, gostava de carregar ao ombro, como os homens, ou de mostrar a força na manivela da moenga e na alavanca da prensa. As raparigas fortes eram mais acarinhadas.
Sem sombra de dúvida que colheita empolgante era a vindima. Permitia toda a espécie de gente: homens, mulheres e crianças. Merendava-se bem, reinava a alegria e enchia-se a barriga de uvas diversas: morangas, dedo de dama, e ainda havia uma videirinha trazida do Douro, por graça, que dava umas uvas muito doces. Nada disso entrava nos balseiros que iam para a Adega. Deus nos livre de traçar o vinho. E a tarefa pedia traje a rigor: chapéu, boina ou lenço à cabeça, uma camisa velha e dois farrapos: pr’á rodilha e pr’ò “purso”. A rodilha pede um pano grosso, para calçar o cesto sem trilhar a cabeça. O pulso, pede um lencinho da mão, em jeito de ligadura, que impeça as pingas de escorrerem pelo braço até ao sovaco e o incomodativo cola-descola. Ainda que “quanto mais colar, maior é o grau”. Mas isso era medido à entrada da Adega e não nos competia a nós, simples jornaleiros, aferir açúcares.
Quando o vinho verde entrou nas bocas do Mundo e a Adega Cooperativa tudo fazia para chamar a si as colheitas e cobrir as encomendas, muitos deixaram de ter o trabalho em casa. Caíram em desuso os lagares, acabaram as noites de pisadas e o cheiro de brolho fermentado. Ficava o suficiente para o consumo do ano, em alguns casos, e o resto seguia nas carrinhas dos tractores para a Cooperativa, onde os sócios se abastecem à vontade, descontando no ano seguinte e dispensando-se o uso de dinheiro. Um luxo. Na vila, à boca da ponte, os miúdos esperavam os tractores para se empoleirarem no taipal traseiro e apanharem a boleia até à Adega. Sempre enchiam o bandulho e armavam um pagode a atirar bagos a quem passava. Era a única fila de trânsito que conhecíamos, feita de tractores e meia dúzia de carros de bois, noite e dia, desde o fim de Setembro até meados de Outubro. Era a aldeia a vir à vila, sem ideia de ir ao tasco ou à missa, e a vila orgulhosa dos seus lavradores, desejando-lhes muitas pipas. E era, também, o meu momento de glória.
Meu Pai ia à vida dele e confiava-me o tractor. Puxas à frente, desengatas e desligas. A emoção era tal que quase caía numa tentação do diabo: tratá-lo pelo nome. Ok Zé. Ele tão bonito... boa figura, olho cor de sulfato, um fidalgo com coração simples. Gostava de conviver, metia-se nas tascas todas as noites, adorava a gente da sua terra, de os ouvir, de lhes dar coisas, de trocar favores. Vens-me cá podar, afogo-te em vinho e lavro-te o campo grande. Conhecia-os de gingeira. Aos domingos, metia-os no carro e iam lanchar a Tuy. Para alguns, continuava o menino Zézinho. As peixeiras vibravam com ele. Zéziiinho! e quando uma bez me lebou no motão? Cala-te mentirosa. Ai num s’alembra? Ha, ias com as pernas todas à mostra. Isso é que tu gostavas, ordinária... Ai que bããodido. A menina num bá no que diz o paizinho oubiu? Doce, bom mas bruto, cegava de raiva e berrava sem acanho onde quer que fosse. Era justo, mas usava da força para intervir por um amigo, pela Mulher, pelos sobrinhos... menos por mim. Se forem maiores que tu, agarras no que estiver à mão e dás-lhes.
Conheci-o ainda antes de todas as muitas vindimas, peixeiras e lavradores, como topógrafo da Celulose de Angola. Usava bons botins de carneira, passava dias fora de casa, voltava cheio de pó e de saudades e era o herói dos seus ajudantes a quem chamava “os meus capatazes”. Nenhum branco mandava comprar uma grade de cervejas todos os dias para o pessoal beber nas longas horas que passavam no mato. Quando deixamos o Alto-Catumbela, esses homens formaram uma barreira à nossa frente, choraram como crianças e vi o meu Pai abraçar um por um, desfigurado de tanto desespero.
GUI ABREU LIMA
(DaLheGas)
7 de Maio de 2012
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