terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Fernando Namora in 'Marketing'




Marketing


Aqui a meu lado o bom cidadão

escolheu Sagres

que é tudo tudo cerveja

a pausa que refresca

a longa pausa de um longo cigarro King Size.

atenção ao marketing.

Eu não gosto de cerveja

mas tenho de gostar que os outros gostem de cerveja

sobretudo da Sagres

para não contrariar os fabricantes de cerveja.

atenção ao marketing.

Ninguém contraria os fabricantes de cerveja

ninguém contraria os fabricantes do Opel e da Super Silver

nem os fabricantes de alcatifas para panaceias

nem as panaceias nem os códigos e os édredons macios

nem as mensagens de natal dos estadistas

nem os negociantes de armas da Suíça

nem o homem de capa negra que virou as costas ao Palmolive.

Está tudo perfeito e deito-me no conforto de um Lusospuma

a ver as processões passar mesmo sem anjos mesmo sem anjos

que são agora selvagens e voam numa Harley.

Deito-me e obedeço aos fabricantes do Clarim

que é uma alta onda ou uma onda alta

sem esquecer as fitas do John Waine e a chama viva do Butagás

e se calhar sentir fome terei toda a frescura serrana

numa fatia de pão.bu

atenção ao marketing.

Vitonizo-me desodorizo-me atravesso as ruas nas passagens dos peões

louvo quem me dizem para louvar e desconfio dos negros americanos

e dos blousons noirs que não usam Lux

e não compram um frigorífico a prestações

e com o meu escudo invisível

portejo-me dos vírus subversivos

sou um bom cidadão sou um bom cidadão

obedeço ao marketing à General Motors e ao Pentágono.

Dantes tinha problemas era o odor corporal

e eu não o sabia até me higienizar seis vezes ao dia com o sabonete das estrelas

e as paradas marciais e os 5-3 do Eusébio à Coreia

e o talco Cadum que ama demoradamente roucamente tepidamente os corpos que

[merecem ser amados...

Obedeço ao marketing não contrario.

Ninguém contraria os fabricantes das ideias e os fabricantes do Fula

que é o da cor do sol

ninguém pisa os riscos brancos do tráfego

nem chama os bombeiros sem concorrer ao sorteio

concorro concorro e vejo nos sinaleiros o pai natal vestido de Scotchgard

ninguém sai do emprego antes de assinar o ponto a horas fixas

e gastar o dinheiro da semana sábado à tarde

no Dardo que é tudo a prestações e é mesmo em frente da Música no Coração.

Fazendo Portugal mais alegre com o folclore da TV e a tinta Robbialac

não contrario obedeço obedeço e meto os meninos na cama

quando me dizem vamos dormir.

atenção ao marketing.

Sagres é uma boa cerveja

e eu acabarei por gostar da Sagres

como gosto do Rexina.

Sagres é a pausa que refresca e tem vitaminas

todas as bebidas da televisão têm vitaminas

mesmo as do programa literário que é detergente

e eu uso-as e sou um cidadão perfeito

e até já consigo adormecer com hipnóticos

depois de tomar o Tofa descafeinado

e no Verão visto calções de banho de fibras sintéticas

para me banhar na Torralta

cidadão perfeito perfeitamente bronzeado com o Ambre Solaire.

Também vou arear as caçarolas e os nervos e os miolos

com um pó azul de que não me lembra o nome

não me lembra mas a culpa já não é minha

porque na mesma noite

massajado com Aqua Velva

fiz a barba com Gillette, e Schick e Nacet

e fui não sei aonde sempre com a mesma lâmina

e oito dias depois (eu era actor ou toureiro?)

a lâmina ainda me escanhoou mais uma barba

antes de eu descer no aeroporto

onde me esperava um agente do marketing.

Os produtores viram-me à descida do avião

primeiro julgaram que era o filho da Sophia Loren

ou o Onassis mas era eu

e gostaram da minha barba bem feita.

(Da barba bem feita

ou do casaco Dralon que não se amarrotara

durante a viagem da Polinésia para Lisboa?)

Confesso que já não me lembra mas a culpa não é minha

pois na mesma noite

fui o homem de não sei quê que marca o rumo

por vestir regras ou camisas ou calças que não enrugam

e fartei-me de assistir a discursos e a inaugurações

e fartei-me de comer chocolates Regina e pescada congelada

e de lavar a roupa com Ajax e com o Rino

e de me banhar com Omo ou seja uma onda de brancura

e fiz-me mecânico de automóveis

só para que o cavaleiro da armadura branca

me tocasse com a sua lança mágica

e me pusesse branco branco branco

três vezes branco como as páginas do Reader’s

de cérebro irrepreensivelmente lexivizado

pelos locutores da televisão pela oratória dos políticos

e passado a ferro com um ferro eléctrico automático

que talvez fosse – ou não? – uma enceradora Philips.

Tudo coisas admiráveis e desesperadamente necessárias

que eu devo ao marketing

e me são cozinhadas num abrir e fechar de olhos

nas palavras de pressão

de todo o bom cidadão.

E no intervalo bebi café puro o do gostinho especial

Sical Sical que é um luxo verdadeiro

Por pouco dinheiro.

Vitonizadi esterilizado comprando e concorrendo

esqueci-me de amar do amor das árvores e do rio

esqueci-me de mim tão entretido estava a admirar a Lisnave

esqueci-me do rio e dos barcos

e da saudade de pedra do Fernando Pessoa

e esqueci-me de sonhar que era marinheiro.

Concorra concorra foi isso que não reparei

que uma rapariga cortou as veias

talves fosse com uma Diplomatic

que tem o fio e o silvo de uma espada a degolar avestruzes.

No programa só havia bombeiros

nem uma rapariga a cortar as veias (não era a Caprília)

nem o rio nem o amor nem a raiva da Venezuela.

Se mágoa sentia era a de ter esquecido

dar murros no espião da Missão Impossível

(atenção ao marketing)

e já não saí de casa para ver o rio

só pelo gosto de me aquecer com um Ignis.

E na mesma noite noite boa noite branca

fumei Estoril Valetes Kayakes e bebi Compal

depois da Salus e da Schweppes

fumei quilómetros e quilómetros de prazer

quilómetros e mais quilómetros – há um Ford no meu futuro –

mais facturas mais fomes mais prazer

e agora já não sei qual dos cigarros com filtro

me soube melhor.

Foram todos foram todos de certeza

pois se me dizem que preciso de Omo

do Ajax do Estoril do Dralon

do esquentador e das alcatifas sem nódoas

não me preocupo não te preocupes

o Meraklon não preocupa ninguém

mando para o diabo o amor e o rio e a rapariga que cortou as veias

não me preocupo não me preocupo

digo pois pois ao Jota Pimenta e ao Escort

e hei-de virar-me do avesso para os possuir.

Os corpos que merecem ser amados merecem o talco Cadum.

Numa onda de brancura obedeço ao marketing. Sou um bom cidadão.

E na mesma noite

vi umas bombas que caíam muito ao longe

numa lonjura mais longe que a Lua

onde as pessoas podiam estar quietas a fumar Marialvas

e a lavarem-se com Rino que lava lava lava

lava três vezes mais lava ou mata que se farta

e me ajuda a ser bom cidadão.

atenção ao marketing.

Vi uns homens a inaugurarem estátuas

e vi fardas e paradas e conferências

e crianças a sorrir

para os homens sorridentes que inauguravam estátuas

e vi homens que falavam e pensavam por mim

a escolherem por mim o bom e o mau

de modo a que eu não possa ser tentado

a confundir o mau com o bom ou vice-versa ou vice-versa.

Deitado no conforto de um Lusospuma

vi os porcalhões dos hippies nas ruas de Estocolmo

bem longe nas ruas de Estocolmo

mesmo a pedirem uns safanões

dos homens que acariciam crianças

e têm todas as verdades na mão

só para que eu seja um bom cidadão.

É isto: marco o rumo. As minhas cuecas marcam o rumo.

Preciso e gosto de uma data de coisas

e só agora o sei.

Menos da Sagres. Mas acabarei por gostar.

Ninguém contraria o marketing por muito tempo.

Ninguém contraria os fabricantes de bem fazer

o bom cidadão.

E tudo graças ao marketing.


Fernando Namora

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