Qual é o lado mais cómico disto?
Uma das primeiras grandes revelações da minha infância, ao surpreender as coisas, foi verificar que me interrogava, invariavelmente, assim: qual é o lado mais cómico disto? Os desfiles militantes, as cerimónias religiosas, os cumprimentos obsequiosos e constrangedores, os adereços excessivos da autoridade, as exigências rígidas da hierarquia, os compromissos artificiosos. E eu: qual é o lado mais cómico disto? Daí a fazer esta pergunta interior em qualquer situação dramática, foi um passo. A doença , a brutalidade , a estupidez , a intolerância, a maldade pura, a alucinação despótica - até o leito do sofrimento, o leito da morte. E eu : qual é o lado mais cómico disto ?
Andava nessa altura a rir-me muito com as caras burlescas do cinema, não sabia que Shakespeare e Bergman existiam, ainda não tinha lido alguns livros trágicos e patéticos - e se soubesse que devia ter a faculdade de me rir de mim próprio, sabia-o sem o saber. Quando uma vez caí, a patinar no passeio com botas cardadas, e parti o dente da frente, fiz a pergunta calada e sacramental, enquanto as pessoas olhavam para mim:
- Qual é o lado mais cómico disto?
Quando a infância começou a ser perturbada por desetendimentos mais amplos com o real, insisti na defesa da minha alegria, do meu prazer de viver. E até na dor que retirava dos que amava ( dos meus avós, das minha velhas tias, por exemplo), e até na morte, que sempre me surpreendia, protegia-me com essa frase defensiva, essa armadura de sol, de chuva e de subir a escada a quatro e quatro.
Creio que os cómicos do cinema me compreendiam melhor do que ninguém. Habitavam o coração do desastre com a desenvoltura, o corpo de borracha e a paciência dos grandes missionários da naturalidade.
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