sábado, 2 de janeiro de 2016

Memórias das Infâncias



Gostávamos muito de doce de framboesa

e deram-nos um prato com mais doce de framboesa

do que era costume

mas

a nossa criada a nossa tia-avó no doce de framboesa

para nosso bem

porque estávamos doentes

esconderam colheres do remédio

que sabia mal

o doce de framboesa não sabia à mesma coisa

e tinha fiapos brancos

isso aconteceu-nos uma vez e chegou

nunca mais demos pulos por ir haver

doce de framboesa à sobremesa

nunca mais demos pulos nenhuns

não podemos dizer

como o remédio da nossa infância sabia mal !

como era doce o doce de framboesa da nossa infância !

ao descobrir a mistura

do doce de framboesa com o remédio

ficámos calados

depois ouvimos falar da entropia

aprendemos que não se separa de graça

o doce de framboesa do remédio misturados

é assim nos livros

é assim nas infâncias

e os livros são como as infâncias

que são como as pombinhas da Catrina

uma é minha

outra é tua

outra é de outra pessoa

 Adília Lopes
(O Decote da Dama de Espada
s )


*Lá em casa também havia imensas( crescem como mato ,quase não precisam de cuidados) e quase todos gostavámos de doce de framboesa.... mesmo que não gostássemos, comíamos . Todos os dias. Havia tanto... tinha que se lhe dar vazão.

Não nos deu a veia. .. Aliás a Adília Lopes é única .

Com o passar do tempo e a chegada dos netos, as pessoas tornam-se mais tolerantes, amaciam. Assim também lá em casa: o doce deixou de ser impingido .


Um dia, à hora do lanche , entre uma criança de quatro anos e a sua avó:
- Quer compota, Manel?
- Sem pota, Vó , obrigado.

Que me lembre, foi este o diálogo mais poético que, entre nós, aconteceu a propósito de framboesas.
LCB


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