Esta vida tem de tudo. Escrevo sobre o que vejo, o que sinto, o que me interessa, sobretudo se e quando me apetecer. Se me lembrar, posso até contar a história do sobretudo que perdi num dia em que estava mesmo na lua...
terça-feira, 21 de março de 2023
Love Everybody - Lyle Lovett
terça-feira, 7 de março de 2023
Carta (Esboço)
Lembro-me agora que tenho de marcar um
encontro contigo, num sítio em que ambos
nos possamos falar, de facto, sem que nenhuma
das ocorrências da vida venha
interferir no que temos para nos dizer. Muitas
vezes me lembrei de que esse sítio podia
ser, até, um lugar sem nada de especial,
como um canto de café, em frente de um espelho
que poderia servir de pretexto
para reflectir a alma, a impressão da tarde,
o último estertor do dia antes de nos despedirmos,
quando é preciso encontrar uma fórmula que
disfarce o que, afinal, não conseguimos dizer. É
que o amor nem sempre é uma palavra de uso,
aquela que permite a passagem à comunicação
mais exacta de dois seres, a não ser que nos fale,
de súbito, o sentido da despedida, e que cada um de nós
leve, consigo, o outro, deixando atrás de si o próprio
ser, como se uma troca de almas fosse possível
neste mundo. Então, é natural que voltes atrás e
me peças: «Vem comigo!», e devo dizer-te que muitas
vezes pensei em fazer isso mesmo, mas era tarde,
isto é, a porta tinha-se fechado até outro
dia, que é aquele que acaba por nunca chegar, e então
as palavras caem no vazio, como se nunca tivessem
sido pensadas. No entanto, ao escrever-te para marcar
um encontro contigo, sei que é irremediável o que temos
para dizer um ao outro: a confissão mais exacta, que
é também a mais absurda, de um sentimento; e, por
trás disso, a certeza de que o mundo há-de ser outro no dia
seguinte, como se o amor, de facto, pudesse mudar as cores
do céu, do mar, da terra, e do próprio dia em que nos vamos
encontrar, que há-de ser um dia azul, de verão, em que
o vento poderá soprar do norte, como se fosse daí
que viessem, nesta altura, as coisas mais precisas,
que são as nossas: o verde das folhas e o amarelo
das pétalas, o vermelho do sol e o branco dos muros.
Nuno Júdice, in “Poesia Reunida”
domingo, 5 de março de 2023
Proclaimers : Live on Letterman 1989 (21 March) - I'm Gonna Be (500 Miles)
sábado, 4 de março de 2023
Bruno Nogueira - Literatura por medida ( Revista Sábado, 2 de Março de 2013)
Bruno Nogueira
Humorista
02 de março
Literatura por medida
O autor está morto, pegaram no livro dele e alteraram frases e palavras de maneira a que o leitor não se sinta ofendido. Vivemos uma época em que para não ofender os leitores vivos, manipula-se a escrita dos autores mortos.
ESTÁ A ACONTECER um pouco por todo o lado, mas sobretudo em livros. E até que enfim que está a acontecer, porque assim o mundo fica logo mais justo. Eu pelo menos sinto isso, quando saio à rua. A editora britânica do escritor Roald Dahl (autor de Matilda, Charlie e a Fábrica de Chocolate, etc.) terá contratado uma equipa para analisar as obras do autor, e sugerir alterações. Tudo para que os livros de Dahl “continuem a ser apreciados por todos nos dias de hoje”. Logo aqui, um erro. Devia ser: “Para que continuem a ser apreciados por todos os panhonhas nos dias de hoje.” Assim sendo, pegaram nesses livros e alteraram algumas passagens. Porquê? Porque há pessoas a quem fazem dói-dói determinadas palavras. E qual é a solução? Temos aqui vários caminhos, e vejam se conseguem adivinhar o mais sensato: Hipótese A, o leitor escolhe não ler porque não aprecia a linguagem contida no livro. Hipótese B, o leitor lê e entende que uma obra de ficção representa isso mesmo (uma obra de ficção), e contextualiza na época em que foi escrito; ou hipótese C, o leitor amua porque há no livro palavras que ele sente que não deve ler, e a editora altera para que ele nunca mais tenha de passar por tamanha afronta. Se está alcoolizado e respondeu a hipótese C, acertou.
Foram alteradas centenas de palavras. Por exemplo, saiu a palavra “gordo” para entrar “enorme”. A palavra “feio” também foi abolida. Numa outra obra, uma personagem que é descrita como “terrivelmente gorda e terrivelmente flácida” passa agora a ser “bruta” e que “merece ser esmagada pela fruta”. Os Oompa Loompas do Charlie e a Fábrica de Chocolate deixam de ser “pequenos homens” para serem “pequenas pessoas”. E noutra obra os “homens-nuvem” passam a ser “pessoas-nuvem”. Isto faz com que Roald Dahl passe a ser woke, mesmo sendo um esqueleto. Trocar palavras de obras quando não gostamos delas ajuda muito. Já fiz o mesmo com “IVA”, agora só tenho de ir a tribunal explicar que aquelas iniciais me deixam
Também é curioso que isto seja uma questão que incomoda sobretudo os autores, porque os principais lesados nestas mantas de retalhos são os leitores, que ficam privados de uma linguagem que corresponde ao escritor que estão a ler, para passarem a ser brindados com colagens de várias palavras que o escritor nunca escreveu em vida (nem na morte, já agora), mas que foram escritas por uma equipa que sente que era assim que o autor deveria escrever nos tempos actuais. Acontece que o autor não escreveu nos tempos actuais, o que faz com que não consiga ter uma linguagem do futuro, uma vez que escreveu no passado. Pormenores. Não sei se consigo passar a gravidade da questão sem me repetir: o autor está morto, pegaram no livro dele e alteraram frases e palavras de maneira a que o leitor não se sinta ofendido. Também se soube que os livros de 007 de Ian Fleming vão sofrer alterações para que não tenham expressões consideradas racistas ou ofensivas. Vivemos uma época em que para não ofender os leitores vivos, manipula-se a escrita dos autores mortos. É possível que funcione, na medida em que as pessoas vivas fazem-se ouvir com mais intensidade do que as pessoas mortas. Se eliminarmos palavras como “gordo” e “feio” dos livros, deixa de haver gordos e feios na vida real, o que é um descanso para a vista. Também deixa de haver racistas. Os problemas do mundo ficam todos resolvidos com o Microsoft Word.
E Deus nos livre que um leitor leia uma coisa que o incomoda. Na verdade, Deus nos livre que uma pessoa seja confrontada com um filme, uma série, uma pintura, um livro, ou qualquer coisa que não encaixe perfeitamente nos parâmetros de gosto daquela pessoa. Correu sempre tão bem quando alteraram frases de livros, e proibiram a venda de outros, que não estou a ver que desta vez vá correr pior. São sempre sinais de uma sociedade em evolução: achar que as novas gerações não podem ter acesso à forma como as outras gerações escreviam. Nesse caso, para que serve o passado, seja ele bom ou terrível? Como é que se pode evoluir, sem se saber de onde se veio? Enfim, perguntas que deixo aqui hoje, mas que daqui a 20 anos alguém vai alterar para “A pessoa Bruno gostava muito de nuvens e de papoilas”.
Antigamente a isso chamava-se mimo, hoje em dia é progresso. Quando alguém começava a fazer birra porque um amigo lhe tinha dito uma palavra feia, o que se dizia era: “Respondes à altura e defendes-te, ou então viras costas e vais-te embora.” O que se ensina hoje é: “Se alguém disser uma palavra feia que tu não queres ouvir, vais até à directora da escola e depois tratamos de mandar o menino para uma terra muito longe daqui, e nunca mais vais ter de ouvir falar dele.”
Entretanto, após protestos de várias pessoas (entre elas o escritor Salman Rushdie), a editora veio dizer que vai manter a versão original para quem quiser, mas que vai também editar esta versão revista, para o público mais sensível. Não será mais fácil o público mais sensível procurar obras mais sensíveis? Eu sei, faço muitas perguntas.
Estamos a blindar o mundo para que as pessoas só vejam e ouçam o que não lhes provoca o mínimo beliscão. A arrogância de achar que vão passar pela vida só a ouvir o que querem tem tudo para correr bem, porque está provado cientificamente que o que ofende uma pessoa, é exactamente o mesmo que ofende a que está ao lado, por isso o assunto vai-se resolver com facilidade e rápido consenso.
Palavra de gordo.
Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfico