quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Adília Lopes - Colorado? Claro?( Jornal o Público -Crónicas)

Adília Lopes é uma escritora , poetisa imprevisível , dona de uma imaginação e cultura prodigiosas que lhe permitem abordar e estabelecer ligações entre "alhos e bugalhos" com um fio de raciocínio admirável.

Nesta crónica , fala de cores , de pintores, da cópia , reprodução, clonagem, do lado bom e do lado mau da vida, da sociedade cinzenta em que vivemos e muito mais...

Junto imagens dos quadros mencionados, The Umbrellas( Les Parapluies) de Renoir e "The Kiss"("Der Kuss") de Klimt e vídeos sobre a vida e obra destes grande pintores.




Colorado? Claro? 
Segunda-feira, 17 de Junho de 2002

Penso que mostrar só o lado cor-de-rosa das coisas é pecar por omissão. Mas mostrar só o lado negro das coisas é pecar também e também por omissão. É preciso mostrar o lado ultravioleta e infravermelho. O lado verde, o lado azul, o lado branco. Gosto de ver. Não sou nada "voyeur" (o feminino deve ser "voyeuse"). Não há, é claro, perversão nenhuma nisto. Gosto de cores, de todas as cores. Do amarelo gritante, berrante, garrido, chilreante da casa em frente. E gosto de ver claramente visto e claramente vista. Gosto de participar e de ajudar.

Pierre-Auguste Renoir (1841-1919), o pintor impressionista, pai do realizador de cinema Jean Renoir, descobriu numa tabacaria o segredo da pintura. Entrou para comprar tabaco a pensar na pintura e nos seus problemas. O empregado mostrou-lhe duas caixas e perguntou-lhe:

- Colorado? Claro?

Renoir respondeu:

- Colorado! Claro!



Mas esta era a resposta à questão que o preocupava de facto: o que é a pintura? Renoir comprou as duas caixas de tabaco e saiu.

Conheço esta história em terceira mão. Vem em Inglês no livro "Renoir" de Colin Hayes, Spring Books, Londres, 1961, p.24. O autor diz que este episódio da vida de Renoir está relatado por Albert André na sua biografia do pintor, "Renoir", Paris, 1923. A terceira mão de que falo é o próprio Renoir a contar a história, vivida por si, a outra pessoa. Originalmente a história acontece com duas palavras espanholas: Colorado, Claro. Dois adjectivos que são também dois nomes próprios. Em Francês, com Renoir e Albert André, em Inglês com Colin Hayes e aqui em Português comigo mantém-se o Espanhol.

Não vale a pena dizer que os quadros de Renoir são lindos e que os devem ver e rever. Uma das coisas mais maravilhosamente democráticas deste meu tempo é haver chapéus-de-chuva com a reprodução estampada do quadro de Renoir "The umbrellas". A minha amiga e vizinha Maria da Luz comprou um chapéu destes em Viena. E ainda mais maravilhosamente democrático é ser cada vez mais fácil poder ir a Londres ver face a face o verdadeiro quadro de Renoir na National Gallery.

Conversar com Renoir face a face e tomar café com ele no café Danúbio como faço com a Maria da Luz seria fantástico. Acredito piamente que um dia, não muito longe, não muito perto, no tempo que há-de vir, no espaço prometido, isso terá lugar, acontecerá.

As reproduções de obras de arte fazem mais bem do que mal porque embora as adulterem e banalizem, familiarizam-nos com elas. Ponho aqui, no entanto, duas questões que me parecem fundamentais. Uma caixa de bombons Baci (quer dizer beijos em italiano) com a reprodução de "O beijo" de Klimt na tampa não são beijos: são bombons, são chocolate. E uma reprodução do quadro "O beijo" de Klimt não é o quadro "O beijo" de Klimt. Nunca estudei Biologia, mas sei que um clone de Klimt não pintará outra vez "O beijo". Sabemos que o único acontece uma vez e não se repete. E só há únicos. A reprodução fez sempre muita confusão. Cito J. L. Borges (texto intitulado "Tlön, Uqbar, Orbis Tertius" incluído no livro "Ficciones"), traduzo, "um dos heresiarcas de Uqbar declarou que os espelhos e a cópula são abomináveis porque multiplicam o número dos homens". Apetecia-me escrever muito mais sobre este assunto mas esta crónica já está com 3 788 caracteres. Tem no máximo 4 500 caracteres. Vou parar. Não quero meter o Rossio na Betesga.

Nem tudo são rosas. A par de mim e de tanta gente que se deleita com Renoir há os que não querem, não podem ou perderam a capacidade de se deleitar com Renoir. Há tempos, ao sair do Centro Comercial das Amoreiras, vinda da capela, um pobre, dos muitos que andam por lá à volta, veio ter comigo. Ia-lhe dar uma esmola, mas ele disse-me que não queria dinheiro. Pediu-me que lhe comprasse um croissant com queijo. Não valia a pena dar-lhe o dinheiro porque os seguranças não deixam entrar os maltrapilhos. Voltei atrás, comprei-lhe o croissant com queijo não sem pensar que podia ser um aldrabão que me estava só a gozar. Mas não. Vi-o comer o croissant. Conversámos mais. Passa ali o dia e também, é claro, não o deixam entrar para ir à casa de banho. Fiquei com a impressão de que era um pobre sério. Pus-me a pensar se o deixariam entrar no Centro Comercial das Amoreiras só para ir à capela. Provavelmente não. Isto escandalizou-me, horrorizou-me. Passei a frequentar a igreja de S. Domingos, ao Rossio, as marcas do fogo não foram apagadas e na porta principal há um cartaz discreto mas bem visível que diz "Assistência de emergência". Aí se dão em bom Português moradas e telefones para encontrar em Lisboa comida, abrigo, duche, trabalho, advogado, etc.

Não é fatal que a sociedade do bem-estar exija a sociedade do mal-estar. Mais do que não ser fatal, não é sensato. E é imoral.

O chapéu-de-chuva da Maria da Luz é Made in China, feito possivelmente por chinesas operárias pagas ao preço da chuva.
Adília Lopes







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